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domingo, 7 de novembro de 2010

Sobre terrores e prazeres nos primeiros anos escolares

Compartilho uma crônica de memórias, nascida de exercício acadêmico para dialogar com professores em formação.
O texto foi originalmente publicado em 06/11/2010 no blog da Mulher


Memórias escolares da década de 1970

Sou a mais velha de cinco irmãos. Ao entrar na escola, em 1971, já tinha dois irmãos e o terceiro chegou quando eu estava na terceira série e o quinto na sexta série. Filha de mãe baiana de cultura rural que criou seus sobrinhos (já que era a caçula de uma família de dez irmãos), recebi dela o legado de me tornar ‘adulta’ muito cedo. Tinha muitas tarefas que nem sempre conseguia cumprir a contento. Lembro de apanhar logo pela manhã, porque ao sair para comprar açúcar não encontrei a marca usada pela mãe. Ela não era má, era jovem e com muitas responsabilidades. Com o pai sempre na estrada e ela tendo de lidar sozinha com tantos desafios, acabava por me forçar a crescer antes do tempo.

Talvez porque vivenciei essa infância distante da traçada pelo modelo clássico do século XVIII e tivesse muitas outras preocupações na vida que me impediam de experimentar o afeto também presente nos muros intra-escolares não me lembro dos rostos ou nomes de minhas primeiras professoras.

Mesmo assim, a escola para mim foi o lugar por excelência de encontro social, de fugir do trabalho árduo, das surras, dos gritos, dos arroubos violentos da mãe que pioraram muito ao longo dos anos e com a doença dela e os dois irmãos que vieram depois. Eu adorava ir à escola, chorava quando a mãe demorava a voltar e passava da hora de entrada.

Terrores infantis: a primeira professora e a diretora general

Apesar de não me lembrar dos rostos nem dos seus nomes, lembro das ações da maioria das minhas professoras.

Minha primeira professora me parecia insuportável. Entrei na escola alfabetizada, aprendi com a TV que chegou na Copa de 1970. Ficava acompanhando os créditos e atazanando qualquer ser que sabia ler diante de mim, perguntando que letra era e que som fazia quando se juntavam. Ficava brava com a tevê que passava os créditos tão rapidamente.

Minha primeira professora não percebeu que eu já sabia ler e escrever e me achava uma completa imbecil e assim me tratava. Dava-me desenhos com alguns comandos como: um coelho numa ponta, a toca em outra e no meio um labirinto e dizia “– Está chovendo, o coelho está com pressa, faça-o chegar rápido na toca”. Não titubeava: traçava uma linha reta entre coelho e toca.

Terminava rapidamente as ‘lições’, fazia as de minha amiga de carteira e começávamos a conversar. A professora brigava. Uma vez, para me castigar, separou-me da amiga e me fez sentar com um menino. Isso foi mortal para mim. Sentava-me na pontinha pra ficar longe do menino, bumbum doendo, ela, visivelmente, divertia-se com a situação, as demais crianças também, o que tornava o castigo moral ainda mais humilhante. O garoto, sem jeito, procurava me consolar e piorava ainda mais meu sofrimento. Ela não percebeu ou não se comoveu com a minha tristeza profunda. Cheguei em casa e disse à mãe que não iria mais à escola. Chorei muito e ela, quase sempre sem paciência, parou para tentar entender e conversar.

Ao mesmo tempo em que ir para escola livrava-me dos arroubos de violência de minha mãe, permitia-me o encontro com amigos e o exercício de um modelo de infância, que se as crianças pudessem escolher decidiriam por ele, topar com algumas figuras adultas, especialmente com a minha primeira professora e a diretora era quase como passar por revista na prisão. E muito embora eu não soubesse o que isso fosse, sabia o quanto era aterrorizante.

Toda a escola no pátio, alunos enfileirados por tamanho, cantavam o hino, juravam bandeira e a diretora passava em revista. Era a hora de meu maior pavor: em princípios da década de 1970 a uniformidade era a meta: a altura das meias brancas; o comprimento das saias; a brancura das camisas e os cabelos e unhas limpas eram exigências. Ai do infeliz que a mãe não mantivesse o padrão, era exposto ali, no pátio escolar, feito um Tiradentes mirim. Ridicularizada, a vítima era apontada como o Sujismundo, uma personagem que não queríamos nem de perto ser comparados a ela.

Para as classes pobres, de origem rural e nordestina que migraram para os pólos industriais da década de 1960, a apresentação impecável era um modo de se proteger dos inúmeros preconceitos. Minha mãe sempre foi caprichosa com a higiene das roupas. Até hoje, aos setenta anos, apesar da máquina de lavar, ainda assim, ela primeiro lava as roupas no tanque e só depois as coloca na máquina. Quando morávamos em casa com quintal, ela tinha quarador e o processo era ainda mais meticuloso.

Minha mãe também tinha fixação por meias com pompom. E comprava as meias três quartos obrigatórias nos uniformes escolares com os maledetos pompons. Na hora da revista chegava a ficar com as pernas doendo de tanto que eu as pressionava uma contra a outra para não aparecer o volume dos pompons.

O grande medo era me tornar alvo do castigo exemplar daquela diretora, fiel devota da ditadura militar, embora não soubesse o que significasse ditadura e achasse o presidente Garrastazu Médici parecido com o meu avô.

Depois do hino e da revista no pátio, a diretora visitava sala por sala num incansável ritual. Carregava um cartaz que ao longo do tempo foi ficando surrado com imagens se opondo lado a lado em três fileiras. Em uma lembro-me de tanques de guerra e pomba da paz. E ela apontava para os tanques e perguntava-nos: “– Na Revolução de 1964 teve guerra?” Ao que em coro respondíamos: Não! Apontava para outro jogo de imagens cujos significados eram antagônicos e respondíamos com o mesmo vigoroso ‘Não’, até chegar ao último quadro com duas mãos, uma de pele clara e outra escura e tínhamos de dizer: “A Revolução de 1964 trouxe paz, amor e felicidade”.

A professora que adorava me aplicar castigos morais um dia propôs-nos que fizesse um desenho para um concurso. Fiquei observando as formigas no quintal e fiz um desenho a lápis. No dia seguinte mostrei para ela e foi a primeira vez que elogiou algo produzido por mim e não me tratou como idiota. Escolheu o meu e o desenho do menino que ela me obrigava a sentar ao lado para enviar para o tal concurso e nos mandou ‘passar a limpo’.

Voltei ao quintal e me pus a observar as formigas longamente, fiz outro desenho e no verso do sulfite escrevi:

Fila de formigas

Levam folhas

Alimento da família.

Havia caprichado ainda mais no novo desenho, coloquei na pasta e fui radiante para a escola mostrar à professora. Meu colega de carteira entregou o seu primeiro. Ela começou a gritar ensandecida. Chamou-o de ‘Sujismundo’, menino sem capricho, relaxado. Olhei para a minha pasta de couro e vi que a folha do desenho tinha feito uma pequena orelha. Ela pediu que eu entregasse o meu. Fiquei gelada, muda, lívida e quase sussurrei: — Esqueci, desculpe-me, senhora professora. Ela me olhou com aquela expressão de que eu não tinha solução, era definitivamente um caso perdido.

Um dia ela não apareceu na escola. Fomos informados de que seu pai havia morrido e ela não retornaria. Comemorei a notícia como se fosse presente de natal só pra mim. Naqueles duros anos de chumbo, sem indústria chinesa, economia globalizada e era Lula, ganhar presente de natal só se fosse algo coletivo, um jogo, por exemplo, para brincar com os outros dois irmãos.

Acho que minha primeira professora abandonou a escola sem saber que eu fazia poesia.

Do prazer da criança de ser vista, ouvida e respeitada

Estava esfuziante no pátio, mais falante do que de costume e a substituta nos observando. Contava às minhas amigas que sabia cozinhar. Elas riam e me achavam gabola. Foi aí que minha segunda professora entrou na conversa e perguntou: “– E como se faz feijão?” Começo a narrar com orgulho cada etapa aprendida entre a cozinha e o quarador da mãe:

– Tem de catar o feijão, separar as pedrinhas, depois põe de molho. Pede pra mãe pôr na panela de pressão, é muito pesada e na hora de abrir também chama a mãe, porque pode explodir (e fazia aquela cara severa e grave de quando falamos coisas sérias). Sobe na cadeira, pega a tábua de carne e pica o alho, frita em outra panela, não pode deixar cair água, porque voa óleo e queima, é dolorido. Desliga a panela do alho frito, deixa esfriar um pouco e joga o feijão, assim não espirra. Liga de novo o fogão e deixa ferver para o tempero saborear os grãos. Eu também sei fazer arroz e macarrão, professora!

E pela primeira vez eu vi uma professora sorrir cúmplice, legitimar meu saber aprendido às duras penas entre puxões de orelhas e mãe irritada com filho pequeno chorando e fraldas de algodão quarando ao sol. Por isso senti uma pena imensa quando, antes do primeiro ano escolar terminar, tenha sido obrigada a deixar minha cúmplice de Guararema e arriscar novas investidas nas relações professora-aluna em Mogi das Cruzes.

E, para piorar, no mesmo novembro da mudança de casa, escola e cidade, o corpo todo pipocou com a catapora. Só com muita insistência da mãe me deixaram fazer as provas finais. Enquanto de pijama aguardava isolada em uma sala a mãe convencer a nova diretora descrente, que insistia que de nada adiantaria, pois eu não iria passar, a mãe, que sempre acreditou, disse: “– Dê as provas, ela tem o direito de fazer”. Errei duas palavras: advogado e admirável. Média final: 95.

Virei uma espécie de celebridade na nova escola e na segunda série a professora me pôs num concurso com meninos da quarta série. Tratava-se de responder questões sobre a vida do patrono que dava nome a instituição: Adelino Borges Vieira. Sabia tudo sobre o professor, escritor e numa pergunta que envolvia cálculo com datas, fui mais rápida na soma que o meu concorrente.

Na terceira série abandono amigos, professora e a escola que me tratava como prodígio e lá vou eu de novo descobrir outras searas do universo escolar em Juquiá.

Várias outras professoras maluquinhas como aquela que descobriu o gosto do feijão que eu sabia preparar, a que apostou na menina espevitada que gostava de estudar e não tinha medo de disputar com meninos mais velhos um jogo de perguntas sobre o patrono escolar passaram por minha vida e me permitiram contar segredos e não me quiseram sentada feito robô na carteira. Mas delas, igualmente, não me lembro nem dos nomes, nem dos rostos, até que encontrei dona Rosa.

Rosa foi a primeira professora cujo sorriso espetacular (e igualmente raro), a textura da pele negra feito ébano e suas lindas blusas de seda em tons de rosa permanecem vivos em minha memória.

Rosa sem o saber me apresentou mestre Romão e Gaetaninho que me fizeram chorar copiosa e prazerosamente ao pé de um chapéu-de-sol. Foi amor à primeira leitura. Dona Rosa me fez descobrir a literatura ao me apresentar os Machados — o Assis e o Alcântara — que, por sua vez, fizeram-me entender que texto tem mais que informações, podem abrir a janela d’alma.

Dona Rosa também tinha mania de concursos. Hoje, na estante, além das inúmeras medalhas que recebi naqueles anos em sua companhia, repousam, meio empoeirados, dois Jabutis, recebidos em 2005 e 2008, exatamente 30 anos depois que a vi pela primeira vez e 30 anos após nos separamos. As cascas dos pequenos troféus de metal com as letras do alfabeto sempre me fazem lembrar de Rosa, ela é parte significativa desta longa trajetória.

Atualização: Meu amigo @sergioricardo1964 mandou-me uma foto de Dna Rosa na festa dos professores de 2009. Como podem ver, ela continua linda e na ativa, educando outras Marias e Sérgios…

Um comentário:

Rosalia disse...

Adorei sua crônica. Embora eu tenha passado toda essa fase em Campinas SP, sou sua contemporânea e me senti contemplada com a sua narração. Tanto escolar quanto familiar. Mas acho que me permiti reprimir muito mais do que voce o que me faz sentir respeito ainda maior por ti. Parabens! A foto de Dona Rosa me emocionou.