Há divergências entre necessidade de mudança, prazos e conseqüências
Publicado em 10/04/2008 - 13:00
Por Lilian Burgardt "Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro."
(Pronominais - Oswald de Andrade)
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| Logo depois da independência do Brasil, os escritores diziam que não bastava que houvesse uma independência política de Portugal, era preciso também estabelecer uma independência cultural. Por isso, o Brasil nunca reconheceu a autoridade lingüística de Portugal. As divergências ortográficas foram ocorrendo e, desde 1924, procura-se uma ortografia comum. Em 1945, chega-se a um acordo de unificação, que se tornou lei em Portugal no mesmo ano. No entanto, como o Parlamento Brasileiro não o ratificou, a ortografia brasileira continua a ser regida pelas disposições de 1943.
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Já no início do século XX, escritores modernistas criticavam nossa língua portuguesa. As divergências cresciam sobre como falavam e escreviam os brasileiros e a discrepância da língua falada por um povo colonizado por portugueses, mas que com o passar dos anos desenvolveu um idioma próprio. O tempo e as divergências culturais dos povos só aumentaram as diferenças entre a nossa língua e a tradicional língua portuguesa. Extraiu-se a letra C de "objectos" e as tremas da "saüdade", por exemplo. Sem que, para o nosso povo, elas fizessem tanta falta assim.
Para especialistas, as línguas portuguesas (Português Brasil e Português Portugal) são gêmeas não idênticas que dificultam a difusão internacional do idioma. Os documentos dos organismos internacionais que adotam o português como língua oficial precisam ser duplicados, pois devem ser publicados numa e noutra ortografia. A certificação de proficiência de língua portuguesa não pode ser unificada. Os materiais didáticos e os instrumentos lingüísticos, como dicionários e gramáticas, produzidos numa ortografia não servem para países que adotam a outra e assim sucessivamente.
Esses motivos levaram Brasil e Portugal, em 1990, a propor um acordo de unificação ortográfica que até hoje, porém, não pôde ser cumprido em virtude das divergências dos dois países em relação aos itens propostos. Para Portugal, o Brasil sugere um modelo que descaracteriza a língua portuguesa, já que a maior parte das regras a serem adotadas após a reforma parte do idioma utilizado pelos brasileiros. Para o Brasil, Portugal adota uma postura inflexível em virtude das pressões de nacionalistas que querem polemizar o acordo ao alegar que o Brasil teria interesse político por trás da reforma, quando pensam em enriquecimento da cultura por meio de uma ampla difusão do idioma.
Legalmente, todas as mudanças que buscam unificar o registro escrito nos oito países que falam português - Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor Leste, Brasil e Portugal - já poderiam estar em vigor. Isso porque o que foi firmado internacionalmente é que, se três países assinassem o acordo, ele poderia entrar em vigor. A medida já foi ratificada por Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, o último, em dezembro de 2006. O Brasil foi o primeiro a ratificar o acordo, em 2004.
No último dia 26 de março, a COLIP (Comissão de Língua Portuguesa) - órgão ligado ao MEC (Ministério da Educação) que responde pela unificação da ortografia da língua no país - decidiu que já esperou o bastante pela resposta de Portugal e enviou uma proposta ao governo para que a reforma ortográfica entre em vigor em 1º de janeiro de 2009. O período de transição entre a norma lingüística atual e a nova seria de três anos. A medida precisa ainda passar por avaliação dos ministros da Educação, da Cultura e das Relações Exteriores para seguir para sanção presidencial.
É verdade, porém, que mesmo em território nacional, especialistas em lingüística e membros da própria COLIP divergem em relação aos termos em que a mudança é apresentada. Discute-se a real necessidade da unificação da ortografia da língua mediante à recusa de Portugal e, também, em decorrência das conseqüências econômicas e educacionais para o país, visto que seria necessário dispor de grandes recursos para reeditar o material didático distribuído nas escolas, além de gerenciar o ônus de reeducar os jovens recém-alfabetizados sob as antigas regras.
Na opinião do especialista em lexicografia e membro da ABL (Academia Brasileira de Letras), Evanildo Bechara, a reforma ortográfica propõe uma unificação da ortografia da língua portuguesa que servirá não só para facilitar a tradução de documentos oficiais, como também de incluir o idioma em um cenário mais amplo em âmbito internacional. Hoje, segundo dados da CPLP (Comissão dos Países de Língua Portuguesa), o Português é a 6ª língua mais falada no mundo. "Com a unificação, ela poderia atingir patamares ainda mais altos. Além disso, facilitaria o intercâmbio cultural entre os países de origem lusófona e o interesse da comunidade internacional por nosso idioma. Isso valorizaria a língua portuguesa como idioma de uma cultura superior", acredita Bechara.
O especialista defende ainda que a unificação da escrita da língua portuguesa é um importante passo em termos de difusão de obras literárias produzidas nos países lusófonos. "A unificação significaria uma economia na edição de livros, pois não seria mais necessário editar uma versão para cada idioma. Além disso, a medida serviria de estímulo para que os países da comunidade se interessassem pela literatura alheia, mais acessível e de fácil compreensão se escritas em um idioma único", aposta ele.
No último dia 5 de abril, em comunicado divulgado pela agência lusa, porém, a APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros de Portugal) condenou o novo acordo ortográfico entre os países de língua portuguesa. "Ainda não é tarde demais - assinala - para se evitar uma catástrofe, pois, certamente, o acordo ortográfico não serve a Portugal". Na opinião da associação, "ao contrário do que é dito pelos defensores do acordo ortográfico, não se considera a aproximação das diversas variantes do Português, mas sim a consagração das diferenças naquilo que é fundamental - a sintaxe, a semântica e o vocabulário -, com clara vantagem para a variante do Brasil".
Ao tomar como referência as obras analisadas, editadas no Brasil e em Portugal, o estudo refere que, "identificadas as alterações, os aspectos facultativos e os casos de dupla grafia, torna-se gritante a manutenção das diferenças frasais e vocabulares e a ordem dos elementos entre as variantes do Português de Portugal e do Brasil, situações estas a que o acordo ortográfico não responde". Ainda, ao terminar o manifesto, a APEL apontou que Portugal perderá parte da sua identidade, pois o meio internacional reconhecerá apenas o Português como o português do Brasil.
Bechara acredita que a negativa lusitana decorre da pressão de nacionalistas que tentam atribuir ao Brasil o desejo de se sobressair a Portugal em relação às novas regras ortográficas. "Tem muita gente desavisada dizendo que o Brasil quer ser a primeira voz a comandar o destino da língua portuguesa. Isso não passa pela cabeça de ninguém, até porque, uma língua não se faz pelo número de falantes, mas pelo seu nível cultural. Há muita gente que pensa que Portugal ceder ao Brasil significaria ceder prestígio internacional, já que seria um demérito para os portugueses escrever da mesma forma que os brasileiros, quando na verdade isso só enriqueceria a cultura da língua. Não há demérito para nenhum canadense escrever o francês como escreve um parisiense e vice-versa. Isso significa que a língua tem unidade cultural. Por essa razão creio que as críticas à unificação são vazias e pautadas no preconceito", declara ele.
Por outro lado, Bechara acredita que as vantagens creditadas à proposta de unificação da língua portuguesa só têm validade na medida em que todos os países da comunidade assinem o acordo, o que inclui Portugal. Membro da COLIP (Comissão de Língua Portuguesa) - entidade que se mostrou a favor da adesão da reforma mesmo sem Portugal - Bechara discorda que o Brasil deva levar a proposta adiante caso o acordo com o Portugal não se concretize. "Não há sentido em propor uma unificação uma vez que Portugal, país que junto ao Brasil desenhou a proposta de unificação, não aceita as regras. A unificação só faz sentido se todos os países estiverem de acordo", opina Bechara.
Também membro da COLIP, a professora Stella Maris Bortoni, discorda de uma reforma ortográfica sem o consentimento de Portugal. "Creio que o propósito da unificação é justamente o de aproximar os povos, não de desunir. O MEC, por sua vez, por meio da COLIP, entende que já esperou tempo suficiente para obter uma resposta de Portugal. Agora, a expectativa é que a reforma seja levada adiante. Na minha opinião, não há dúvida de que ela entre em vigor a partir de janeiro de 2009, até porque outros dois países da comunidade lusófona já assinaram o acordo", explica Stella.
Conseqüências
Na opinião da professora da Uniara (Centro Universitário de Araraquara) Júlia Maria De Oliveira Santos Gorla, que é também diretora de uma escola de Língua Portuguesa, a reforma apresenta problemas, apesar de propor mudanças que ela considera interessantes para a língua, como a extinção definitiva do trema e a subtração do acento circunflexo para verbos no plural como, por exemplo, crêem e vêem, além da inclusão das letras 'k', 'w' e 'y', no alfabeto português.
"Por um lado, a reforma extingue regras obsoletas, o que facilita a grafia das palavras e, conseqüentemente, seu aprendizado. Ela inclui no alfabeto letras que não faziam parte. Temos crianças cuja inicial do nome não está no alfabeto, isso sem contar os estrangeirismos adotados em nosso país. No entanto, se formos pensar em termos de custo benefício, teremos um gasto imensurável de reedição de material já publicado (dicionários, livros de gramática, etc). Para aquilo que a reforma irá mudar, me questiono se o esforço é válido", diz Júlia.
Bechara reconhece os custos com reedição de livros e material didático, mas alega que toda e qualquer alteração no idioma ou nos processos de ensino tem um custo. "Não dá para pensarmos em evolução sem custos," diz. Stella completa ao dizer que o MEC não vai propor a mudança de uma hora para outra. Haverá um prazo para as editoras se adequarem à nova regra. Enquanto isso, também haverá um período em que os livros antigos continuarão valendo. Daí para frente caberá as editoras produzir materiais novos para atender as necessidades do País", afirma.
De acordo com a COLIP, a partir de janeiro de 2009 todos os textos produzidos já devem ser escritos na nova norma (veja, no rodapé da matéria, o que muda na língua). Vestibulares, concursos e avaliações deverão aceitar as duas regras como corretas até 31 de dezembro de 2011. Os livros didáticos distribuídos pelo governo de 2009 para o Ensino Médio poderão estar escritos na norma antiga. Como a compra de livros não acontece todos os anos para todas as séries, espera-se que os estudantes do Ensino Médio possam utilizar a norma atual até 2011. Já os estudantes do Ensino Fundamental deverão receber material didático adaptado às normas do acordo ortográfico a partir de 2010.
Segundo a gerente executiva da Abrelivros (Associação Brasileira das Editoras de Livros) - representante das editoras de livros educacionais -, Beatriz Gellet, a entidade não pretende promover nenhum boicote à reforma ortográfica. Como se trata de uma medida governamental, a associação deverá acatá-la, mas em reunião realizada na última quarta-feira, 9 de abril, os membros da Abrelivros se mostraram preocupados com relação ao prazo estabelecido pelo MEC para a adaptação das publicações.
A Abrelivros considera o prazo inviável e pretende discutir com o ministério a possibilidade de seu prolongamento. "É preciso esclarecer que o processo de produção de um livro é demorado. Não existe corretor ortográfico que possa acelerar o processo de revisão. Se os livros tivessem de ser entregues de acordo com a nova norma, em 2010, eles precisariam ser revistos a partir de agora. No entanto, será um trabalho minucioso de revisar página por página e observar as exceções à regra. Não somos contra a reforma, só queremos prazo para executar o trabalho da melhor maneira possível e não a 'toque de caixa'", explica Beatriz.
Ela afirma que a Abrelivros ainda não tem como mensurar os gastos para a reedição de livros didáticos, nem o impacto da nova medida na venda das publicações, ainda que defensores da reforma acreditem que a unificação da língua irá aumentar as vendas dos livros brasileiros. "Tudo ainda é muito novo, não dá para fazer qualquer afirmação sem uma pesquisa", diz.
Por meio de sua assessoria de imprensa, o SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros) informa que ainda não tem um parecer oficial sobre a reforma ortográfica e, portanto, não pode opinar sobre as conseqüências da adoção da unificação ortografia da língua portuguesa.
(Confira na tabela abaixo dados da pesquisa sobre o mercado editorial brasileiro entre 1990 e 2006 realizada pela CBL - Câmara Brasileira do Livro e pelo SNEL - Sindicato Nacional dos Editores de Livros)
| PRODUÇÃO (1º edição e reedição) | VENDAS |
Ano | Títulos | Exemplares | Exemplares | Faturamento (R$) |
1990 | 22.479 | 239.392.000 | 212.206.449 | 901.503.687 |
1991 | 28.450 | 303.492.000 | 289.957.634 | 871.640.216 |
1992 | 27.561 | 189.892.128 | 159.678.277 | 803.271.282 |
1993 | 33.509 | 222.522.318 | 277.619.986 | 930.959.670 |
1994 | 38.253 | 245.986.312 | 267.004.691 | 1.261.373.858 |
1995 | 40.503 | 330.834.320 | 374.626.262 | 1.857.377.029 |
1996 | 43.315 | 376.747.137 | 389.151.085 | 1.896.211.487 |
1997 | 51.460 | 381.870.374 | 348.152.034 | 1.845.467.967 |
1998 | 49.746 | 369.186.474 | 410.334.641 | 2.083.338.907 |
1999 | 43.697 | 295.442.356 | 289.679.546 | 1.817.826.339 |
2000 | 45.111 | 329.519.650 | 334.235.160 | 2.060.386.759 |
2001 | 40.900 | 331.100.000 | 299.400.000 | 2.267.000.000 |
2002 | 39.800 | 338.700.000 | 320.600.000 | 2.181.000.000 |
2003 | 35.590 | 299.400.000 | 255.830.000 | 2.363.580.000 |
2004 | 34.858 | 320.094.027 | 288.675.136 | 2.477.031.850 |
2005 | 41.528 | 306.463.687 | 270.386.729 | 2.572.534.074 |
2006 | 46.026 | 320.636.824 | 310.374.033 | 2.880.450.427 |
Fonte: SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros) e CBL (Câmara Brasileira do Livro) |
Outra crítica da professora da Uniara em relação à reforma parte da preocupação com os alunos recém-alfabetizados pela atual regra ortográfica adotada pelo Brasil. Na opinião dela, seriam estes alunos os mais prejudicados, pois teriam pouco tempo de conhecimento e seriam logo obrigados a rever o que aprenderam. "Segundo nosso ministro de educação, Fernando Haddad, o prazo para a mudança do idioma é de três anos, com as novas regras em vigor a partir de janeiro de 2009. Creio que no curto prazo a medida irá gerar uma grande confusão, especialmente para quem acabou de ser alfabetizado e terá de reaprender a forma de grafia de algumas palavras", pondera Júlia.
O lingüista da Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) Sebastião Expedito Ignácio, considera que a reforma ortográfica, nos moldes em que é proposta, tem poucos benefícios para o ensino porque é muito tímida. "Os custos da reforma serão muito maiores que os benefícios, mas não há dúvida de que ela tem suas vantagens, como a extinção de regras que já caíram em desuso. Não acho, porém, que ela merece tanto alarde porque é muito mais uma reforma política do que lingüística. Do ponto de vista do ensino, ela muda muito pouco", critica.
O professor reclama do fato dos lingüistas não terem sido consultados para propor as regras da reforma e diz que o argumento de que com a unificação da ortografia haverá estímulo ao intercâmbio é infundado. "Essa história de que a reforma vai estimular o intercâmbio é falsa, porque a reforma ortográfica - nos termos em que foi proposta - não tem nenhum indício de que irá influenciar o intercâmbio entre os países lusófonos", afirma ele.
Na opinião de Ignácio, ao contrário do que é anunciado, o interesse internacional também não tende a ser estimulado com a mudança das regras ortográficas. "O interesse por um país surge à medida que ele cresce e evolui em termos econômicos e culturais. É isso que desperta a curiosidade da comunidade internacional, não a facilidade da língua", reforça. Para validar seu argumento, o professor lembra a explosão de cursos de mandarim após o surgimento da China como potência mundial.
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| | Cerca de 1,6% das palavras são alteradas. Os portugueses deixarão de escrever 'húmido' e usarão 'úmido'. | Consoantes mudas | Também somem o 'c' e o 'p' nas palavras em que estas letras não são pronunciadas, como em 'acção' ('ação'), 'acto' ('ato'), 'baptismo' ('batismo') e ' óptimo'('ótimo'). | | | Alfabeto | O 'k', o 'w' e o 'y' entram no alfabeto, que passa a ter 26 letras. | Trema | O trema desaparece nas palavras em português. Só fica em palavras estrangeiras, como Hübner e Müller. Exemplos: Agüentar - aguentar Lingüiça - linguiça | | | Acento circunflexo | O acento circunflexo desaparece em palavras com duplo 'o' e 'e', como 'vôo' e 'crêem', que passam a ser escritos voo e creem. | Acento diferencial | Pára (verbo parar) ≠ para (preposição) - para
Péla (verbo pelar) ≠ pela (combinação de per + la) - pela
Pêlo (substantivo) ≠ pelo (combinação de per + lo) - pelo
Pólo (substantivo) ≠ polo (combinação antiga de por + lo) - pólo | Hífen | O hífen some quando o segundo elemento da palavra começar com 's' ou 'r'. As consoantes passam a ser dobradas, como em 'antissemita' (atualmente 'anti-semita'), e 'contrarregra' (atualmente 'contra-regra'). Exceção: quando os prefixos terminam em 'r' se mantém o hífen. Como 'hiper-requintado' e 'super-resistente'. | |